Olá,
Esta semana o pessoal que é fã de Tormenta e o pessoal que é fã de 3D&T tiveram uma excelente novidade: a Jambô passou a disponibilizar os materiais das duas linhas em versão pdf. A versão pdf possui um custo mais baixo e, para quem tem um note ou um tablet, é bem mais confortável de carregar para consultas em jogos do que os livros (por exemplo, levar o Módulo Básico e o Guia da Trilogia já ocupa 75% da minha mochila, fora o peso). Além disso, como ambos são Licença Aberta, auxilia bastante ao pessoal que mexe com essa área a pegar as partes abertas do sistema – o 3D&T já tinha o seu módulo básico em pdf gratuito pela Jambô, mas o TRPG, não. Salientando, por fim, que o material que faz parte da Licença Aberta é apenas o do sistema, qualquer terminologia ou conteúdo descritivo de personagem, cenários ou qualquer outra coisa referente à Tormenta possui direitos autorais e devem ser respeitados.
E eu acredito que isso auxilie um pouco na construção de materiais independentes utilizando-se da OGL do TRPG, visto que como os pdf’s oficiais são em formato texto (ao contrário dos formatos imagens dos pdf’s “não-oficiais”), o processo de transcrição é mais simples: basta selecionar o texto, copiar e colar. O pessoal da Wiki do TRPG, por exemplo, estava tendo que digitar todas as partes de sistemas e isso demora muito se levarmos em conta a quantidade de material que o TRPG tem, mesmo sendo tão recente. Acredito que agora a Wiki vai ser “finalizada” e ela será uma base principal para quem deseja ter algum material em OGL aqui no Brasil. Claro que havia outros OGL’s já, como o Old Dragon e o Sword & Wizardry em português, disponível em pdf, mas eles são retroclones e muitas regras “desnecessárias” para o old school foram suprimidas.
Mas vou explicar desde o início pra evitar que alguém fique boiando hoje… Desde que o RPG foi criado, ele possui alguns sistemas que tomaram um forte destaque e criaram uma forte comunidade de fãs. Apesar de haver alguns com mais ou menos renomes, no cenário nacional imperou a trindade D&D, GURPS e Storyteller. 95% de quem aprendeu a jogar RPG aqui no Brasil, principalmente no final do século XX, começou por algum desses RPG’s. Então, era muito comum, no final do século XX, você encontrar adaptações gratuitas de cenários conhecidos como Warcraft II ou Yu Yu Hakusho para alguns desses sistemas ou até mesmo cenários próprios para alguns desses sistemas. O lance é que o uso do sistema dessa forma é visto como quebra de direito autoral e as editoras responsáveis por eles lutavam judicialmente para processar os criadores de tais materiais e derrubar seus sites. E isso não ocorria só aqui no Brasil, era algo mundialmente mesmo. Isso forçava os designers da época a elaborarem sistemas próprios para seus cenários, para uso próprio, fosse gratuito ou comercial. O que dificultava um pouco sua divulgação e adesão por outros, porque muitos preferem manter-se em seu sistema-mãe (aquele em que começou a jogar) ou sistema-esposa (aquele que conheceu depois, mas virou seu favorito), recusando-se a aprender um sistema novo para jogar aquele jogo em específico.
Quando a Wizards of the Coast adquiriu os direitos do D&D, comprando a falida TSR, ela criou uma nova versão do D&D, a versão hoje conhecida como 3.X, e criou a Open Game License, liberando um documento na internet com o material aberto. Basicamente o documento possuía todas as regras do D&D 3.X se retirando partes referentes a cenários do D&D ou referentes a regras específicas que a Wizards queria manter para si. Além disso, ela liberou uma segunda licença que permitia que se escrevesse suplementos para o D&D. Então, quem estava construindo seu material próprio, poderia fazer duas coisas: 1. Pegar todas as regras do OGL e colocar em seu livro, modificando-as como achasse melhor, desde que o material criado por ele se tornasse Open Game License também; 2. Em vez de pôr as regras, fazer referência aos módulos básicos do D&D – como ocorria nos livros oficiais de cenários do D&D – permitindo assim que o material tivesse o selo d20 em sua produção. Isso permitiu que aquelas editoras que queriam publicar seu material o fizessem e utilizassem o material do D&D, vinculando seu cenário ao “um sistema para a todos dominar”, tendo acesso à fan-base do D&D que poderia jogar aquele cenário sem precisar aprender novas regras. Mas, mais do que isso, a Open Game License permitia que todo o conjunto de regras fosse alterado e adaptado para o que o game designer desejasse. Assim surgiram versões d20 para animes, como o BESM d20, para Supers, como o Mutantes & Malfeitores, bem como os retroclones (que buscavam emular a fase old school do RPG) e até versões que só usavam a base mesmo do sistema (Classe de Dificuldade), como o FUDGE e o seu sucessor mais conhecido, o FATE.
Atualmente somente a Open Game License continua ativa. O pessoal da Wizards, ao lançar o D&D 4.0 não o liberaram em Open Game License e ainda alteraram as regras na licença de referência aos módulos básicos de forma que deixou muito limitado o uso, o que fez o material do 4.0 ser meio que deixado de lado pelas outras editoras – que ou continuaram com o OGL ou vendo o boom dos sistemas alternativos retornaram a criar seus próprios materiais, visto que a comunidade atual é bem diferente da comunidade do final do século XX. Mas isso não foi um movimento solitário por parte da Wizards, posso citar que aqui no Brasil a Editora Daemon liberou o seu sistema, nomeado de Sistema Daemon, em licença aberta. O que acarretou em várias e várias publicações independentes e gratuitas que a própria editora fazia questão de hospedar, auxiliando na divulgação, bem como até na publicação de material impresso utilizando-se do sistema – como o livro Imortais. Em paralelo, embora ainda não oficialmente por não ser tão levado a sério, o 3D&T fazia o mesmo, criando uma forte comunidade que foi responsável pelo retorno do sistema através da Jambô – por este motivo o 3D&T Alpha além de ter o módulo básico gratuito também é Licença Aberta. Mais recentemente outros jogos tomaram medida similar, embora utilizando o Creative Common. Posso usar como exemplo o Apocalypse World, cujo hack mais conhecido é o Dungeon World (e a Kobold’s está preparando para trazer junto com a Secular o Monsterhearts) – atual fenômeno na esfera indie por seu método inovador de jogo, vários hacks, para todo tipo de cenário estão surgindo pela net, semana passada encontrei um pra Supers.
Eu acredito que o que fez o movimento OGL ser menor no Brasil está relacionado ao fato do documento oficial da Licença não ter sido traduzido pela editora responsável pelo sistema. O documento só estava disponível em inglês e nem todo mundo tinha acesso ao idioma, bem como a maioria do pessoal que se envolve nesse tipo de atuação independente são jovens – os mais velhos que você encontrar por aí, 99% começaram anos atrás. Daqui do Brasil só consigo listar dois materiais OGL’s que surgiram com força: o Old Dragon e o Tormenta RPG. E ambos surgiram após o advento do D&D 4.0, ou seja, bem recentemente, quando o movimento OGL já estava bem fraco e o pessoal da terrinha que curte mexer com essas coisas já tinha encontrado um porto no 3D&T ou no Daemon. Apesar disso eu cito o Old Dragon como referência, porque além de conseguir um forte apoio do pessoal que aderiu ao movimento old school, o tratamento próximo do pessoal da editora com seus colaboradores e fãs, além do material de alta qualidade, acarretam na criação de uma comunidade que está crescendo cada vez mais. O Tormenta RPG por ser um pouco mais recente eu não vejo tanta força ainda, mas acredito que seja questão de tempo também – ainda mais agora com a saída dos pdf’s.
A criação de um sistema próprio tem que levar em conta essas variáveis dos sistemas de Licença Aberta. Vale a pena ou não usar um? A principal vantagem, como falei, é que você já pega uma onda estruturada, com um público fiel e uma fanbase já constituída, o que pode trazer maior adesão ao seu material. A principal desvantagem, é que você já pega uma onda estruturada, com materiais bem feitos e bem trabalhados e você tem que ralar para que ele tenha um real destaque em meio à comunidade. Então, como a principal vantagem é a principal desvantagem, o ideal é que você veja se o sistema licença aberta atende a necessidade do que você deseja em seu jogo. Por exemplo, certamente eu posso fazer um material mais “high-fantasy” com o Sistema Daemon, mas muito provavelmente as adaptações e ajustes que eu teria de fazer para isso seriam bem menores se eu pegasse um d20 system. Em compensação, se eu quero um jogo mais realista, eu posso construir um com 3D&T, mas eu terei bem mais sucesso e precisão, sem precisar de tantos ajustes e alterações se eu utilizar o Sistema Daemon. Um jogo social pode ser construído com o Daemon, mas muito provavelmente eu consiga uma atmosfera mais narrativista, explorando o social, utilizando o Monsterhearts. E por aí vai…
Em questão de design, quanto menos ajustes você precisar fazer para que o material esteja pronto e atenda sua necessidade, menos energia é consumida e mais você pode direcionar essa energia para o cenário e para esses ajustes, hipertrofiando o sistema naquele ponto que te interessa. Eu sei que há o fator “sistema favorito”, mas como designer você não pode se prender a esse detalhe. Leia os outros materiais, teste-os em mesas, veja o que funciona e o que não funciona, pese prós e contras e, se no fim, você escolher pelo seu favorito, será uma escolha consciente e não apenas por desleixo. Além do mais, sabendo o que funciona e o que não, você pode importar materiais ou regras, criando hacks, que complementem o seu sistema. Como eu demonstrei na série “Como Treinar seu Dragão”, pegando mecânicas de RPG’s indies e apresentando-as para os mainstreams – mais precisamente o d20. Também é aconselhável que se você domina o inglês, ler as postagens de outros gamers designers, como o John Wicks ou do pessoal do D&D Next, por exemplo. Em seus textos, eles apresentam as escolhas que realizaram e os motivos que guiaram para a escolha de tais ações. Compreendendo o motivo da existência da regra é possível compreender o seu uso e quais consequências poderão ter ao retirá-las.
No caso do John Wicks, você pode adquirir em português o Blood & Honor e se deparar com excelentes textos sobre a escolha de design no material dele. Sério, mesmo que você não se interesse por jogos no Japão feudal ou jogos narrativistas ou jogos de tragédia e drama… Vale muito a pena adquirir e ler. O pdf está mais barato que uma oferta no McDonalds, vale muito a pena dar uma economizada em um final de semana pra adquirir o danado. 😀 E pra não dizer que é jabá da Red Box, apresento abaixo dois trechos que eu escolhi porque no capítulo final da série de posts “Como treinar seu dragão”, vi algumas pessoas postando sobre o lance de liberdade dos jogadores nos jogos e o quanto isso pode incomodar às vezes. E esses dois trechos abaixo falam sobre essa ideia liberdade aos jogadores que predomina entre os RPG’s indies. 🙂 Saliento que o primeiro trecho está bem no início do capítulo Jogadores, na página 111 e 112, e o segundo trecho está no final, na página 141. Nas 30 páginas entre eles há muito mais material, dicas, conselhos e explicações de mecânicas direcionadas ao jogador. Algo que só em RPG’s indies a gente vê com tanta honestidade e clareza – além de estar nas palavras do John Wicks, que escreve maravilhosamente bem e de forma fluente.
“Um Tipo Diferente de Honra
Blood & Honor é um pouco diferente dos RPGs tradicionais. Com esse sistema, os Jogadores têm mais controle sobre a narrativa, assumindo o controle e criando eles mesmos a história. Eu já participei de sessões inteiras em que, como Narrador, não disse uma palavra. Os dados foram rolados, os Riscos assumidos, as pistas descobertas, algumas vidas foram perdidas… E eu não disse uma palavra.
Isso acontece porque os Jogadores têm muito poder neste Jogo. Tanto poder quanto o Mestre de Jogo, se eles quiserem isso. Mas, por que eu faria uma besteira dessas?
Porque eu confio em vocês.
A maioria dos RPGs é desenvolvida levando em conta trapaceiros, babacas e Jogadores apelões. Os designers colocam guardas em certos lugares para evitar que essas pessoas abusem de qualquer furo nas regras. Afinal, isto é um RPG. Existem furos nas regras. Então, ao invés de impor tantos limites aos Jogadores ao ponto deles ficarem sem ar, fiz o oposto. Coloquei todo o Poder diretamente em suas mãos. De novo, você vai perguntar: por que eu faria uma coisa dessas?
Porque eu confio em vocês.
Eu confio que vocês compreendem que se assegurar de que todos estejam se divertindo não é tarefa só do Narrador. É uma tarefa de todos.
Toda a vez que eu me coloco do outro lado da divisória, como um Jogador, eu inevitavelmente me pego fazendo o papel de Narrador de Bolso. Ou seja, eu coloco os outros Jogadores em situações que exijam que eles falem sobre seus Personagens. Coloco-me em uma posição de modo que os outros Personagens ganhem atenção e faço o que puder para transformar aquele momento em algo divertido.
O Narrador de Bolso. Tenha certeza de que os outros estão se divertindo. É claro que eu gosto de ter meu momento de atenção também, assim como todo mundo, mas, espero que gastando um tempo extra com os outros Jogadores, eles farão o mesmo comigo.
Por quê?
Porque se assegurar de que todos estejam se divertindo é uma tarefa de todos.
Por fim…
Claro, você pode pegar estas regras e extrapolá-las.
Encontre o melhor modo de fazer seu Personagem ser melhor do que todos os outros. Entupa a sessão com seu ego e acabe com todo o jogo. Você pode fazê-lo. Ninguém vai tentar te deter realmente. Afinal, os outros jogadores são seus amigos e não querem ferir seus sentimentos.
Porém, veja, eu não sou seu amigo. E realmente não dou a mínima para seus sentimentos, então vou falar por seus amigos: se você vai arruinar a diversão de todos, vá procurar outro jogo. Somos todos adultos aqui, então, vamos jogar como somos.
Ok, agora que nos livramos dele, que o show comece!”
(Blood & Honor, pág. 111 e 112)
“Uma Nota Final
Eu só quero dizer isso mais uma vez: eu confio em você!
Como Narrador, como game designer, como Jogador e, finalmente, como alguém que ama RPGs, eu confio em você.
Eu não criei regras para deter os trapaceiros, os babacas e os valentões cheios de si que arruínam o jogo porque eles estão tão presos ao próprio ego que nem percebem as outras pessoas na mesa.
Não, as criei porque confio em você.
Eu confio que você irá ajudar seus companheiros de jogo a fazer com que o tempo juntos ao redor da mesa – não importa qual jogo vocês estejam jogando – seja o mais divertido possível.
Esse sempre é meu objetivo quando sento em uma mesa de jogo. Talvez porque eu tenha começado minha carreira de RPGista como Narrador e tenha aprendido cedo que meu trabalho era o mais difícil – cuidar da diversão dos demais.
Eu confio em você para fazer isso também e espero ter mostrado caminhos para que isso aconteça ao longo deste capítulo.
E, com isso em mente, só me resta uma pergunta… jogo amistoso?”
(Blood & Honor, pág. 141)
Caso você não tenha ido ao Google pra saber quem é o tal do “John Wicks”, caso não tenha reconhecido o nome, ele é autor do lendário Legend of Five Rings, um cardgame e um cenário de RPG em um Japão Medieval de caráter fantástico. Além de ser autor de vários RPG’s indies como o Houses of the Blooded (que muitos jogadores de Vampiro utilizam o sistema para seus jogos em vez do story), Blood & Honor, Shotgun Diaries (um dos melhores jogos de Apocalipse Zumbi que já tive o prazer de pôr os olhos – também à venda pela Red Box) e Aegis Project (que muitos jogadores de Cthulhutech utilizam o sistema em vez do sistema do CT). Como podem ver, a escolha de um design para o sistema vai muito além de apenas ver probabilidades e rolar dados, envolve todo um elemento direcionado para o tipo de jogo que você deseja que seja realizado, hipertrofiando mecânicas que recompensem essa postura e atrofiando mecânicas que desviam desse foco.
Com isso em mente, pretendo nos próximos capítulos do Nowhere falar dessa modelagem, usando o DK como exemplo – e dependendo do espaço que eu utilizar em cada postagem, posso construir enquanto escrevo essa série do “A Ferro e Fogo” um sistema alternativo usando o Daemon que estou devendo para alguns amigos, o Daemon Noir.
Bonanças.
Atenciosamente,
Leishmaniose
Olá!
Cara, escreve só um pouco menos, pq ler tudo isso dá trabalho! XD
Well… É fato que a OGL salvou muito do nosso amado RPG. Ela abriu portas para experimentos interessantes e que deram uma bela renovada no que havia de RPG, como podemos ver hoje.
Já sobre John Wicks, vc sabe que eu não o louvo como sua pessoa as vezes o faz, mas devo concordar com as palavras dele. A diversão de todos deveria SIM ser preocupação de todos, não apenas do narrador (como muitos jogadores fazem; alguns que nós conhecemos, inclusive). Infelizmente querer mudar os outros é pedir demais, mas ao menos podemos fazer a nossa parte, e jogando qualquer RPG. Vide o bom sucesso do Tsuchi.
Até and Bye…